Enquanto as atenções se voltam para as manchetes do dia, uma reorganização silenciosa e profunda do poder global está em curso, e seu nome é BRICS. O que começou como um acrônimo de mercado, criado por um economista para agrupar as economias emergentes mais promissoras (Brasil, Rússia, Índia e China), evoluiu para se tornar um clube político coeso e a mais séria frente de desafio à ordem mundial liderada pelos Estados Unidos desde o fim da Guerra Fria. Com sua recente expansão, o bloco não é mais apenas uma curiosidade econômica; é uma força geopolítica com uma agenda clara.
Essa ascensão, naturalmente, gera um enorme desconforto em Washington. Para o establishment da política externa americana, o fortalecimento do BRICS é visto como uma ameaça direta à sua hegemonia. Mas e para uma figura como Donald Trump, cuja visão de mundo muitas vezes destoa da tradicional? Como ele enxerga esse novo polo de poder?
Este artigo vai mergulhar fundo na tensão entre o Ocidente e o Sul Global. Vamos explicar por que a simples existência e os objetivos do BRICS representam um desafio para o governo americano e, crucialmente, analisar a visão particular e transacional de Donald Trump sobre essa nova configuração do poder mundial.
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O que o BRICS Realmente Quer? (Não é Apenas Economia)
Para entender a reação americana, é preciso primeiro entender a ambição do BRICS. Os objetivos do bloco vão muito além de simples acordos comerciais. Eles se baseiam em dois pilares centrais:
A Reforma da Governança Global: Os membros do BRICS sentem que as grandes instituições globais criadas após a Segunda Guerra Mundial – como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial – ainda refletem uma distribuição de poder do século XX, dando um peso desproporcional aos EUA e à Europa. O bloco busca ativamente ter mais voz e poder de voto nessas instituições.
A Criação de Alternativas: Diante da lentidão das reformas, o BRICS partiu para a ação, criando suas próprias instituições. O exemplo mais notável é o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), sediado em Xangai, que financia projetos de infraestrutura nos países membros e em outras nações em desenvolvimento, funcionando como uma alternativa direta ao Banco Mundial.
O objetivo mais disruptivo, no entanto, é a chamada "desdolarização". O bloco incentiva cada vez mais que o comércio entre seus membros seja feito em suas moedas locais (Reais, Rublos, Rúpias, Renminbi), um ataque direto ao pilar mais fundamental do poderio americano: a hegemonia do dólar.
A Visão do Establishment Americano: Uma Ameaça Sistêmica
Para o Departamento de Estado, o Pentágono e a maioria dos think tanks de Washington, o BRICS é visto com grande preocupação por três motivos principais:
É um Veículo para a China e a Rússia: O fato de o bloco conter os dois maiores adversários estratégicos dos EUA é o principal ponto de alerta. Washington vê o BRICS como uma plataforma que Pequim e Moscou utilizam para expandir sua influência global, construir uma narrativa anti-ocidental e criar um bloco de votação coeso em fóruns como a ONU.
A Ameaça ao Dólar: A desdolarização não é vista como uma simples questão econômica, mas como uma questão de segurança nacional. A posição do dólar como moeda de reserva mundial permite aos EUA financiar seus déficits com mais facilidade e, crucialmente, usar sanções financeiras como sua principal ferramenta de política externa. Se os países podem contornar o dólar, o poder de sanção americano perde sua eficácia.
A Fragmentação da Ordem Global: O establishment americano, tanto Democrata quanto Republicano tradicional, acredita em uma "ordem liberal internacional" liderada pelos EUA. O BRICS, ao propor um mundo "multipolar", é visto como uma força que busca fragmentar essa ordem, criando um cenário global mais caótico, instável e menos favorável aos interesses americanos.
A Visão de Donald Trump: "America First" vs. o Mundo
A abordagem de Donald Trump, no entanto, difere significativamente da visão tradicional. Sua política externa, guiada pelo lema "America First", é profundamente cética em relação ao multilateralismo e opera sob uma lógica mais transacional e bilateral.
1. O Inimigo é a China, Não o "BRICS"
Para Trump, o conceito do BRICS como um bloco ideológico coeso é secundário. O verdadeiro e principal adversário é a China. Ele enxerga o bloco não como uma aliança de iguais, mas como um instrumento da ambição chinesa para suplantar os EUA como a maior potência mundial. Sua preocupação não é com a ascensão do Brasil ou da Índia, mas com o fato de que eles podem, intencionalmente ou não, servir aos interesses de Pequim. Em sua visão, o BRICS sem a China não seria uma ameaça.
2. A Preferência por Confronto Direto e Bilateral
A estratégia de Trump para lidar com essa ameaça não é fortalecer alianças ocidentais para conter o BRICS. Pelo contrário, sua abordagem é o confronto direto, principalmente na esfera econômica. Ele prefere impor tarifas e travar guerras comerciais diretamente com a China, acreditando que a força econômica americana lhe dá a vantagem em uma negociação "um contra um". Ele vê acordos multilaterais como amarras que restringem o poder americano.
3. Desprezo por Instituições Globais
Enquanto o establishment se preocupa que o BRICS crie instituições para rivalizar com o FMI e o Banco Mundial, Trump já é, por natureza, um crítico dessas mesmas instituições. Ele as vê como parte de uma elite "globalista" que, em sua opinião, não serve aos interesses do trabalhador americano. Portanto, a crítica do BRICS a essas organizações pode, paradoxalmente, encontrar algum eco em seu próprio discurso, embora por razões completamente diferentes.
4. Relações Pessoais com Líderes
Trump valoriza muito as relações pessoais com outros chefes de Estado. Ele pode ter uma relação cordial ou até amigável com líderes de países do BRICS, como Narendra Modi da Índia ou líderes do Golfo, enquanto mantém uma postura extremamente hostil em relação à China. Ele não vê o bloco como um monolito, mas como um conjunto de países com os quais ele pode negociar individualmente, buscando sempre o que ele percebe como o melhor "acordo" para os Estados Unidos.
Conclusão: Duas Visões, Uma Tensão Comum
Tanto o establishment de Washington quanto Donald Trump veem a ascensão de um mundo multipolar, simbolizada pelo BRICS, como um desafio à primazia americana. A diferença fundamental está na natureza da ameaça percebida e na estratégia para combatê-la.
O governo americano tradicional vê o BRICS como uma ameaça geopolítica e ideológica coesa, que precisa ser contida através do fortalecimento de alianças e da defesa da ordem liberal. Donald Trump, por outro lado, vê uma ameaça primariamente econômica e concentrada na China, que deve ser combatida de forma direta, bilateral e agressiva, com pouco apreço pelas alianças ou instituições que ele considera parte do problema.
De qualquer forma, a ascensão do BRICS garante que a competição entre as grandes potências será o grande espetáculo da geopolítica nas próximas décadas, e a forma como os Estados Unidos, sob qualquer liderança, reagirão a esse novo cenário definirá o contorno da nova ordem mundial.

